Histórias soltas
História 1
Era uma vela, uma única vela que alumiava debilmente um quarto. A longa língua rubra da vela estremecia, enquanto ela falava: - Vou morrer, não tarda. Em vão, porque a minha chama não deu luz a nada que merecesse a pena. Nem testemunhei o nascimento de uma criança nem realcei um beijo de amor nem inspirei o poema de um poeta. Podia ter sido o minúsculo farol que ajudasse alguém a ir ter com alguém, mas nenhum vulto quis pegar no meu castiçal solitário. Sou uma inútil. E a vela, a extinguir-se, desfazia-se em lágrimas de cera. Mas um leve ruído, vindo do corredor, alvoraçou-lhe os últimos lampejos. Era um ladrão, que, guiado pela luz da vela, se preparava para levantar a tampa de uma arca que guardaria, decerto, algum tesouro. A vela viu tudo, num relance. Nada já podia, porque o pavio, que sustenta a chama, se afundava no pequeno lago de cera da vela a desfazer-se, a apagar-se, de vez. E eis que, de repente, escureceu. O ladrão sobressaltou-se e, sem luz para guiá-lo, tropeçou numa esteira, que deslocou uma cadeira, que tombou sobre uma prateleira, cheia de livros. Alguns caíram, fazendo imenso barulho. - Quem está aí? - gritou uma voz forte de alguém, que o barulho acordara. O visitante furtivo preferiu não responder e fugiu, deitando ao chão mais cadeiras e estantes, num grande atarantamento. Desceu uma escada, correu por um jardim, saltou um muro e ainda ouviu gritos e o estampido de uma caçadeira, à conta dele. Não fosse ter-se apagado a vela, que se julgava inútil, e a história teria sido diferente.
(Acedido a 2014-04-30 através de https://kids.sapo.pt/descobrir/historias/historia_do_dia/artigo/uma_vela_a_apagar-se)
História 2
Na oficina do escultor, havia grande animação. Chegara uma pedra de cantaria, que foi colocada no meio da sala por oito homens possantes. Oito homens, imagine-se! Pesado serviço aquele.
O escultor pagou-lhes e mandou-os embora. Depois olhou para o bloco, acariciou a pedra, deu uma volta por ali e saiu atrás dos carregadores.
A sala ficou vazia de gente, mas continuou cheia de estátuas. Seriam talvez umas dez estátuas dispostas junto às paredes. Algumas já acabadas, prontas para partir, outras à espera que a mão do escultor as desse por terminadas. Após a saída das pessoas, cabia-lhes agora a vez de falarem.
Afinal as estátuas falam? Sim, nas histórias, têm autorização para falar. Vão ouvi-las.
A que estava mais afastada do bloco de pedra perguntou às colegas:
- Que avantesma é aquela?
Houve risinhos entre as estátuas. Então, a que representava a Vaidade declarou:
- Companheiros destes não fazem cá falta, só ocupam espaço e tiram a luz a quem, como eu, precisa de ser destacada.
Era realmente muito vaidosa a estátua da Vaidade.
- A mim é que ela tira a luz - rectificou a estátua que representava um monge sentado a ler um livro. - Estou aqui, há imenso tempo, a ler este alfarrábio e não consigo passar da mesma página.
A estátua do Arlequim também se queixou:
- Aqui abafa-se. Apetecia-me pular e correr, mas esta pedra atravanca tudo.
A estátua do Atlas, o gigante que suportava o mundo sobre os ombros, acudiu:
- Se queres fazer alguma coisa de jeito, segura por um bocadinho na minha carga, porque quase tenho os braços dormentes. De caminho, aproveito e arrasto para outro lado essa maldita pedra, que já me está a causar engulhos.
Mas o Arlequim fez-se desentendido. Não estava para trabalhos.
A estátua inacabada de um rei qualquer ainda murmurou:
- Ordeno que... - mas, como estava muito incompleta, não conseguiu acabar a frase.
Na manhã seguinte, o escultor começou a trabalhar o bloco de pedra. Desbastou-o muito. O penedo foi ganhando forma.
As estátuas em roda olhavam para aquilo em silêncio, desconfiadas. Mal ele abalou, a estátua lá do fundo inquiriu:
- Que irá dali sair?
Respondeu o Arlequim:
- Um elefante, pois. Que outra coisa esperam?
Aquilo, de facto, intrigava. O escultor trabalhou dias a fio e, do coração da pedra, muito lentamente, uma figura começou a erguer-se. Adivinhavam-se os ombros, a cabeça, os joelhos. Parecia uma figura sentada, coberta com um lençol amarrotado.
Durante a noite, as outras estátuas não se calavam.
- Tem um ombro mais alto que o outro - observava uma.
- E uma cabeça monstruosa - acrescentava outra.
Mas a cabeça monstruosa, pela arte do escultor, foi-se transformando numa delicada cabeça de mulher. Estava sentada a estátua. Tinha as mãos no colo, como se guardasse algo, que ainda não conseguia distinguir-se bem.
- Naturalmente está a ler um livro - alvitrava o monge.
Afinal não era um livro o que ela olhava. Era uma criança. O escultor passara o dia a apurar as feições do bebé. No fim, antes de sair, alargou o sorriso da mãe e foi-se embora.
As outras estátuas, muito despeitadas, continuaram na má-língua.
-Que tempo mal-empregado - dizia a estátua da Vaidade.
-Não trocava a minha carga pela daquela mulher - declarava o gigante Atlas.
- Que boneco tão patareco - gargalhava o Arlequim.
Mas uma voz clara e nova naquela sala sobressaiu da restolhada venenosa das outras estátuas, para pronunciar estas palavras:
- Deixem-se de falas! O menino está a dormir.
Inspirava respeito aquela voz. As estátuas calaram-se.
Nos dias que se seguiram, o escultor demorou-se, pela noite adiante, a completar a estátua da mãe e do menino. Era a sua mais bela obra.
(Acedido a 2014-05-02 https://kids.sapo.pt/descobrir/historias/historia_do_dia/artigo/a_obra_mais_bela)
História 3
- Não gosto nada que olhem para mim - dizia o peixinho vermelho com riscas azuis, que morava no aquário.
Era um grande globo de vidro, enfeitado com algas, umas verdadeiras, outras a fingir, e estava, em lugar de destaque, na sala da tia Elisa.
Quem ia fazer uma visita à tia Elisa dava sempre uma mirada ao peixinho, que revolteava na água, muito enervado.
- Detesto que me observem - dizia o peixe. - Se as pessoas vivessem em aquários também não gostavam que andassem a espreitar para dentro das casas delas.
E o peixinho tentava esconder-se por trás de umas algas, mas sem nenhum êxito. Ou sobrava cauda ou sobrava cabeça.
A tia Elisa, que era uma simpática velhinha, cuidava dele com todo o desvelo. O peixe conhecia-a bem e agradava-se das suas atenções. Era, aliás, a única pessoa que ele tolerava.
Mas a tia Elisa adoeceu. Doença grave. Vieram os médicos, parentes e amigos, que passaram a falar em voz baixa na sala de visitas, com ar muito preocupado. A única coisa que lhes atenuava a preocupação era o peixinho vermelho com riscas azuis, revolteando, alegre e indiferente, no meio do seu globo de vidro. Alegre e indiferente, julgavam eles, porque o peixinho não parava de queixar-se:
- Embirro que olhem para mim. Esta gente toda não tem mais nada que fazer senão postar-se, de olhos arregalados, diante do meu aquário?
Uma dessas pessoas, que distraidamente observava o peixe, teve o seguinte desabafo:
- Não sei quem vai cuidar do peixe, quando a tia Elisa desaparecer.
Para o peixe, a tia Elisa há muito que tinha desaparecido. Desde que adoecera. Quem lhe polvilhava a superfície da água com a ração diária de comida era uma empregada, mas sem as gentilezas da tia Elisa. O peixe sentia a diferença.
Até que, um dia, a tia Elisa morreu. Ficou a sala que tempos sem visitas, de cortinas descidas, portadas cerradas. Mas o peixe sentiu-se mais aliviado.
Entretanto, vieram os sobrinhos para desfazer a casa.
- Quem quer ficar com o peixe do aquário? - perguntou um deles.
Nenhum queria.
- Deita-se o peixe para o tanque do quintal - decidiu um e os outros concordaram.
O peixinho vermelho com riscas azuis foi parar a um tanque de águas profundas. Podia nadar à vontade, pelo meio das sombras e dos lodos, que já ninguém o via.
Foi então e só então que o peixe vermelho começou a sentir saudades do tempo em que todos olhavam para ele.
(Acedido a 2014-06-11 https://kids.sapo.pt/descobrir/historias/historia_do_dia/artigo/um_peixe_na_sala )
História 4
Passa-se na selva a história que vou contar. Nela entram três personagens principais, o leopardo, a girafa e o elefante, mas a mim apetece-me mais começar pelos macacos.
Empoleirados nas árvores, os macacos ocupam o dia a troçar da vizinhança, isto é, dos restantes bichos da selva.
- Do elefante é que não há nada a declarar - diz uma macaca velha, fazendo um trejeito malicioso.
Começam todos os macacos numa grande algazarra:
- É trombudo.
- Patudo.
- Orelhudo.
- É pesadão.
- Molengão.
- Paspalhão.
- Mas é bom, um bonzão - concluiu a macaca velha.
Nisto estão todos de acordo. O elefante pode não ser bonito, segundo as normas de beleza dos macacos, mas não molesta ninguém. Essa é que é essa.
- Vê-lo a ele muito gordalhufo, ao lado da espirra-canivetes da girafa, dá-me cá uma vontade de rir... - e o chimpanzé que isto diz ri-se, mostrando os dentes amarelos.
- Protege-a, desde pequena. Os pais da girafa foram apanhados numa cilada de caçadores e ele tomou-a à sua conta. Dizem que tem feito muito por ela - explica outro macaco.
Divertido com a conversa, um saguim intervém:
- Quem não deve gostar nada dessa amizade é o velho leopardo malhado e pelado. Se não fosse o medo que ele tem ao elefante, já a girafa, a estas horas, era um monte de ossos para os chacais roerem...
Nestas e noutras conversas gasta a macacaria o seu tempo. Depois digam que são os papagaios os palradores...
Na verdade, há muito que o leopardo espiava a girafa e o elefante.
De uma vez que viu a girafa no riacho, junto à cascata, a tomar banho, enquanto o elefante, perto da margem, cabeceava de sono, o leopardo aproximou-se dele e falou assim:
- Ah, meu amigo! O seu bom coração quase pesa tanto como o seu corpo todo. A girafa deve-lhe tudo. O meu amigo amparou-lhe os primeiros passos, abrigou-a, acarinhou-a e, graças a si, ela fez-se a linda girafa, que ambos contemplamos, enternecidos. Belo exemplo, meu amigo, para toda essa bicharia perversa.
Isto declamava, numa voz comovida, o leopardo. Para fazerem uma ideia, basta que vos diga que a cada vírgula corresponde um soluço. Farsante!
- Só é de lamentar que não saiba agradecer os seus sacrifícios com idêntica generosidade... - sussurrou o leopardo.
Neste passo da conversa, o elefante, que tudo ouvira sem manifestar grande interesse, levantou a tromba em ponto de interrogação:
- Que quer dizer? Fale com mais clareza, criatura.
Deu dois passos em frente o leopardo e segredou:
- Andam para aí a murmurar...
E o leopardo tentou convencer o elefante, por meias palavras, de que a girafa, nas suas costas, o tratava por ?paquiderme", palavra muito ofensiva entre os elefantes.
- Não acredito.
Acreditasse ou não, o elefante nunca mais voltou a correr ao lado da girafa. Certo era que ela também deixara de correr. Sem a companhia do seu amigo de sempre, que graça tinham as correrias?
Isto constou na selva e espicaçou a curiosidade dos macacos, de tal forma que resolveram mandar um emissário convocar os dois amigos desunidos, a fim de tirar mais informações.
- Vejo-os muito tristes e cada um para seu lado - disse o macaco emissário, assim que os juntou. - Que se passa?
A girafa, coitada dela, não sabia. Muito amuado, o elefante acabou por confessar:
- Calcula que, nas minhas costas, andam a chamar-me ?paquiderme" - e olhou de lado para a girafa.
O macaco não ficou espantado:
- Bem sei. Do leopardo tudo se deve esperar...
- Do leopardo? - estranhou o elefante.
- Pois claro. O leopardo, de há uns tempos para cá, tem vindo a espalhar que o nosso estimável amigo elefante é um ?paquiderme" da pior espécie e que, por esse motivo, a girafa já cortou relações consigo - explicou o macaco.
- Eu nem sei o que é um ?paquiderme" - disse a inocente girafa.
Estava desfeito o engano e esclarecidos os escondidos intentos do leopardo intriguista.
- Vou dar-lhe uma lição - exclamou o elefante, escavando com as patas na terra e chicoteando o ar com a robusta tromba . - Faça constar entre os macacos e a restante bicharada que, realmente, eu e a girafa nos desentendemos de vez e que cada um foi para seu lado.
Estava o leopardo a afiar as garras, quando ouviu o que na selva se contava.
- Desta não escapas, girafinha! - assobiou ele, de bigodes eriçados.
Ele é que não escapou, ai não, porque a cólera do elefante, animal paciente até onde se pode ser, não perdoa. Lançado a muitos quilómetros de distância, o leopardo não ganhou para o susto nem para os curativos.
De aí em diante passou a andar sempre sozinho e nunca sai senão de noite, quando os elefantes dormem.
(Acedido a 2014-06-17 https://kids.sapo.pt/descobrir/historias/historia_do_dia/artigo/o_leopardo_a_girafa_e_o_elefante )